A gravidade das consequências do não domínio da leitura e da escrita, bem como a percentagem significativa de maus leitores revelada por estudos como o PISA e o PIRLS, justificam que se utilizem instrumentos de avaliação adequados para o despiste de crianças em risco de eventuais dificuldades. Uma intervenção preventiva, anterior ao início do ensino formal da leitura, permite agir mesmo antes de as crianças sentirem dificuldades ou diferenças no seu percurso de aprendizagem em relação ao dos seus colegas.
A gravidade das consequências do não domínio da leitura e da escrita, bem como a percentagem significativa de maus leitores revelada por estudos como o PISA e o PIRLS, justificam que se utilizem desde o ensino pré-escolar instrumentos de avaliação adequados para o despiste de eventuais dificuldades futuras, ainda que o seu diagnóstico só possa ser feito após a aprendizagem e o treino da leitura e da escrita. De notar que o diagnóstico de dislexia implica obrigatoriamente um nível de leitura significativamente abaixo do esperado para a idade e o nível escolar do estudante. Assim, para que o diagnóstico possa ser realizado, é necessário não só que se apliquem testes adaptados à população e padronizados (para os quais se conheçam valores normativos), mas também que o estudante esteja num nível escolar em que se espera que já haja alguma proficiência na leitura, habitualmente após 18 meses de escolaridade.
A literatura científica tem demonstrado que existem sinais de alerta anteriores ao ensino da leitura que permitem identificar crianças em risco de dificuldades. Sinais que podem ser observados em idade pré-escolar, a partir dos quatro anos, e residem especialmente em fracas competências de consciência fonológica (reconhecimento de fonemas, segmentação e manipulação de sílabas, de ataque/rima e de fonemas), reduzido conhecimento de letras (dos nomes das letras e também dos sons que lhes correspondem) e nomeação lenta de sequências de itens visuais (cores, objetos, letras e dígitos).
Independentemente das razões que estão na origem destes sinais, eles predizem a aprendizagem da leitura e, por isso, a sua avaliação precoce merece toda a atenção. Torna-se, assim, fundamental, no último ano do percurso pré-escolar, identificar possíveis crianças em risco para que se possa apostar numa intervenção precoce. Especialmente o conhecimento de letras implica que haja um contacto com o código escrito e, portanto, é necessário assegurar que o desconhecimento das letras não se deve simplesmente a privação cultural (embora também esta privação contribua para a dificuldades de leitura futuras).
Os educadores devem estar alerta para sinais que indiquem que a criança esteja em risco de futuras dificuldades de leitura. Sinais que são diferentes quando a criança frequenta o ensino pré-escolar (Quadro 1) ou já se encontra na fase da aprendizagem da leitura (Quadro 2), mas cujo reconhecimento e registo atempados são cruciais tendo em vista a intervenção precoce.
Poulsen, Nielsen, Jull e Elbro (2017) defendem um despiste precoce de dificuldades de leitura antes do início da instrução pois isso permite uma intervenção dirigida para a prevenção, em vez da remediação, das dificuldades de leitura. Para assegurar a eficácia do despiste são necessárias medidas sensíveis dirigidas a quem carece de uma atenção mais particular. Um estudo recente procurou identificar quais as medidas mais adequadas para sinalizar crianças em risco de desenvolverem problemas de leitura (Catts et al., 2015). Os resultados deste estudo indicaram que uma bateria de despiste, contendo medidas de fluência de letras, consciência fonológica, nomeação rápida ou repetição de pseudopalavras (que podem ser produzidas mas que não têm significado, como “paraneca”), identifica com muita precisão que crianças do pré-escolar se irão revelar bons ou maus leitores no final do 1.º ano de escolaridade (para resultados semelhantes e para uma análise crítica, consultar, Poulsen, Nielsen, Jull e Elbro, 2017).
Quadro 2 - Sinais de alerta da presença de dificuldades de leitura em idade escolar (para além dos do Quadro 1). |
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» Dificuldade no reconhecimento de palavras (e.g., perante o desenho de um automóvel com a legenda escrita , a criança diz “carro”)
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Sinalizar e identificar potenciais dificuldades de leitura de nada serve se, depois, os meios de apoio e intervenção não estiverem disponíveis desde um momento precoce e com eficácia assegurada. Poderá parecer paradoxal falar de programas de intervenção precoce quando a existência de dificuldades de leitura implica aprender a ler e esta aprendizagem, e sua consolidação, decorre ao longo do 1.º ciclo. No entanto, trata-se de uma intervenção preventiva, anterior ao início do ensino formal da leitura, permitindo agir mesmo antes de as crianças sentirem dificuldades ou diferenças em relação ao seu percurso de aprendizagem comparativamente com o dos seus colegas. Mais ainda, tendo em conta os dados do PIRLS e do PISA, e sabendo que fatores extrínsecos podem conspirar para a observação de dificuldades de leitura que poderiam ser à partida resolvidas e que um mau leitor com 15 anos tem, seguramente, uma história de dificuldades de aprendizagem da leitura desde o início desta aprendizagem, torna-se clara a importância de intervenções precoces na leitura e escrita.
Os estudos de intervenção precoce têm mostrado que tanto a intervenção no pré-escolar como a sua combinação com a intervenção no 1.º ano são veículos úteis para prevenir dificuldades de leitura iniciais e também a longo prazo na maioria das crianças em risco. Por exemplo, crianças norte-americanas em risco de dificuldades de leitura que receberam intervenção com especial ênfase em atividades focadas em competências de literacia emergente (como: conhecimento e consciência do código escrito, identificação de letras, correspondências letra-som, contacto com palavras visuais, leitura partilhada), duas a três vezes por semana durante o último ano do ensino pré-escolar, mostraram resultados positivos na aprendizagem da leitura durante o 1.º ciclo, deixando mesmo de estar em risco. A partir de meta-análises, sabe-se que a eficácia da intervenção é três vezes maior em crianças do 1.º ciclo, e especialmente durante os três primeiros anos escolares, do que em crianças do 2.º ciclo ou ensino secundário.
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Autoria: Alexandra Reis, Luís Faísca e Tânia Fernandes Edição de texto: Andreia Lobo Edição gráfica: Vera Antunes
Publicação: 22.setembro.2020
Esta questão encerra em si vários fatores-chave implicados no desafio da aprendizagem da leitura, ou seja: “má leitura”; dificuldades de aprendizagem da leitura; dislexia; quando intervir; obter um diagnóstico. A leitura não é uma atividade espontânea, exige ensino explícito. A sua ligação com a linguagem oral não é intuitiva. Uma leitura de sucesso ou “boa leitura” implica uma leitura fluente com compreensão do significado daquilo que foi lido, e muitas competências estão envolvidas. A sua aprendizagem envolve esforço e ensino sistemático, continuado e explícito. Por isso, é natural que a aprendizagem da leitura seja um desafio para todas as crianças.
Dada a multiplicidade de influências (fatores extrínsecos e intrínsecos ao leitor), as dificuldades de aprendizagem da leitura não refletem necessariamente uma perturbação específica de desenvolvimento da leitura, isto é, de dislexia. Aliás, apenas uma percentagem reduzida de crianças com dificuldades de aprendizagem de leitura tem dislexia. Assim, esperar para ver nunca será uma boa solução; nenhuma criança se torna um leitor com dificuldades aos 15 anos, salvo situações excecionais. Se, por um lado, existem sinais desde uma fase precoce que podem indiciar possíveis dificuldades de leitura (ver Despiste e intervenção precoce - Quadros 1 e 2), por outro lado existem atividades que o educador e o professor podem utilizar para um ensino mais eficaz desde a idade pré-escolar (ver Por uma intervenção precoce e aprendizagem da leitura ativa).
Finalmente, se o ensino e o treino sistemático, continuado, explícito, com envolvimento ativo e motivado da criança, não se revelarem eficazes, a avaliação de dificuldades de aprendizagem da leitura exige uma avaliação neuropsicológica rigorosa, feita por psicólogos com especialização em neuropsicologia. São estes os técnicos para os quais potenciais dificuldades devem ser orientadas. É, contudo, importante salientar que identificar e diagnosticar de nada serve se depois os meios de apoio e intervenção não estiverem disponíveis desde um momento precoce e com eficácia assegurada (ver Intervenção).
Aprender a ler implica decodificar. Uma criança que usa estratégias de adivinhação, como no exemplo dado (ver Despiste e intervenção precoce - Quadro 2), não percebeu ainda o que é ler. Ler não é adivinhar, ler é fazer corresponder toda a sequência escrita (tendo em conta as letras e a ordem das letras que constituem essa sequência; ROCA e ORCA são diferentes) à sua expressão oral, usando as regras de correspondência grafema-fonema. Para que a criança entenda este código, o ensino do princípio alfabético e das regras de correspondência grafema-fonema e das suas exceções tem de ser explícito, sistemático, continuado e repetido e deverá conter cinco fatores-chave:
1. Consciência fonémica;
2. Treino fónico do princípio alfabético e das correspondências grafema-fonema;
3. Compreensão oral
4. Fluência de leitura;
5. Vocabulário (ver Por uma intervenção precoce e aprendizagem da leitura ativa).
Ao contrário da linguagem oral, leitura e escrita não são atividades espontâneas e inerentes ao ser humano. Mais importante ainda, se, por um lado, leitura e escrita são atividades associadas e que se beneficiam mutuamente, por outro lado, são atividades distintas. É, por isso, possível uma criança ter dificuldades na escrita, não revelando as mesmas dificuldades na leitura. Isto é especialmente observado em línguas cuja ortografia não é transparente, para as quais um grafema não corresponde linearmente a um único fonema e vice-versa, como acontece em Português. Além disso, em português europeu, a mestria da escrita é mais difícil de alcançar do que a mestria da leitura. O conhecimento das regras de correspondência grafema-fonema será suficiente na maioria dos casos para uma leitura correta do português. Contudo, no caso da escrita, é necessário que saibamos qual a constituição ortográfica exata da palavra. Por exemplo, a palavra <MÁXIMO> poderia, desconhecendo-se a sua forma ortográfica, ser escrita como <mássimu>, mas esta não é a representação ortográfica correta.
Como leitura e escrita não são simplesmente uma cópia visuomotora da linguagem oral, estando sujeitas a constrangimentos diferentes, também a sua correspondência pode ser difícil. Por exemplo, na fala corrente, a palavra <PERIGO> é produzida com a sílaba inicial /pri/. Esta discrepância entre a versão escrita e oralizada da mesma palavra pode dar origem a dificuldades na sua escrita correta, porque, usando as regras de conversão fonema-grafema do português e desconhecendo a forma escrita <prigo>, seria a forma adequada para grafar a palavra oral. É por isso que algumas crianças apresentam dificuldade na escrita de palavras em que a discrepância entre fala e escrita é notória, como acontece também em palavras que contêm <re> e <er> como em <PRESENTE> ou <PERFEITO>.
A literatura científica tem demonstrado que existem sinais de alerta anteriores ao ensino da leitura que permitem identificar crianças em risco de dificuldades. Sinais que podem ser observados já em idade pré-escolar. O seu despiste, antes do início da instrução, é importante pois permite uma intervenção dirigida para a prevenção, em vez da remediação das dificuldades de leitura. A utilização de registos de linguagem, quando as crianças realizam diferentes tipos de tarefas, ajuda os educadores e professores a ser cada vez mais capazes de observar bem e detetar os sinais relevantes do que poderá ser uma dificuldade de linguagem.
Catts, H. W., Nielsen, D. C., Bridges, M. S., Liu, Y. S., & Bontempo, D. E. (2015). Early identification of reading disabilities within an RTI framework. Journal of Learning Disabilities, 48, 281-297.
Poulsen, M., Nielsen, A.-M., V., Juul, H., & Elbro, C. (2017). Early Identification of Reading Difficulties: A Screening Strategy that Adjusts the Sensitivity to the Level of Prediction Accuracy. Dyslexia, 23, 251-267.
Vale, A. P. (2018). Instrumentos de avaliação da leitura em língua portuguesa: Análise Crítica. In O. Moura, M. Pereira & M. Simões (Eds.), Dislexia: Teoria, avaliação e intervenção (pp. 157-208). Lisboa: PACTOR, Edições de Ciências Sociais, Forenses e da Educação.
A avaliação com vista ao diagnóstico deve ser abrangente, incluindo não só a leitura, a escrita e capacidades que lhes estão associadas, mas também um conjunto diversificado de domínios cognitivos que podem estar prejudicados. É o balanço entre as áreas fortes e fracas, tanto ao nível do funcionamento cognitivo como académico, que vai contribuir para se traçar o perfil da criança e promover estratégias de intervenção personalizadas.
Todos os programas de intervenção eficazes têm cinco pontos em comum que podem ser usados como estratégias com alta probabilidade de eficácia na instrução de crianças com e sem dificuldades de leitura: intervenção focada, reduzido número de participantes, elevada intensidade, método fónico, atividades ativas e estruturadas de leitura.